A pandemia de COVID-19, para além da área da saúde, também acarretou consequências econômicas, principalmente por conta das medidas de distanciamento social, que ocasionaram o fechamento do comércio e das atividades não essenciais. Uma dessas consequências é a crescente impossibilidade de locatários cumprirem integralmente com os pagamentos dos aluguéis em virtude da diminuição de suas rendas.
O assunto é tão latente que fomentou o Projeto de Lei nº 1179/20, o qual ainda aguarda votação na Câmara dos Deputados, instituindo regras transitórias para as relações jurídicas privadas durante a pandemia de COVID-19[1]. Dentre as propostas do PL, está a suspensão da concessão de liminares para despejo de inquilinos por atraso de aluguel; ausência de nova garantia ou fim do prazo de desocupação para ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020 – data em que foi publicado o decreto legislativo que reconheceu o estado de calamidade no País – , até 30 de outubro de 2020[2].
Outro artigo presente no PL versava sobre a suspensão do pagamento dos aluguéis quando o locatário residencial sofresse alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração[3]. Entretanto, essa matéria restou suprimida da proposta.
Tendo em vista esse cenário, neste artigo, trataremos sobre a possibilidade de flexibilização do valor dos aluguéis frente ao cenário de pandemia, bem como analisaremos como alguns dos Tribunais do país vêm enfrentando o assunto.
A locação se configura pela obrigação de uma das partes de ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição[4]. Nesse sentido, o contrato de locação é bilateral, oneroso e consensual, ou seja, uma das partes (locatário) paga à outra (locador) uma prestação (aluguel) arbitrada por um acordo de vontade entre as partes pelo uso e gozo do bem locado.
O valor do aluguel é definido dentro das possibilidades econômicas das partes, levando em conta o momento da constituição do contrato. No entanto, por conta de acontecimentos extraordinários e/ou imprevisíveis (como é o caso da pandemia de COVID-19), pode ocorrer uma modificação na possibilidade econômica do locatário, tornando o valor do aluguel excessivamente oneroso.
Nesse caso, é imperiosa uma renegociação do aluguel para estabelecer o reequilíbrio contratual entre as partes, fixando-se um novo valor de prestação com base na convergência de interesses ante o cenário atípico. Inclusive, os próprios julgadores, nas demandas de suspensão/revisão dos locatícios, orientam que as partes busquem uma solução para o reequilibro contratual de forma consensual e extrajudicial:
“Conclamo as partes à autocomposição, pois elas mesmas têm o conhecimento exato de suas capacidades econômicas e de mitigação de prejuízo, para fins de manutenção, ao fim, do Contrato.[5]”
“(…) a dilação do prazo para cumprimento da obrigação ocorre apenas por ato negocial, é dizer, com a aquiescência do credor.[6]”
Todavia, há casos em que em que locador e o locatário não conseguem chegar a um consenso, motivo pelo qual essas demandas acabam chegando ao Judiciário.
O pleito dos locatários para readequação ou suspensão do valor dos aluguéis, em geral, é sustentado com base na Teoria da Imprevisão, que consiste no fato de que “as circunstâncias que envolveram a formação do contrato de execução diferida não sejam as mesmas no momento da execução da obrigação, tornando o contrato extremamente oneroso para uma parte em benefício da outra. E, ainda, que as alterações que ensejaram o referido prejuízo resultem de um fato extraordinário e impossível de ser previsto pelas partes.”[7]; bem como nos artigos 317[8] e 478[9] do Código Civil, que preveem o reajuste e a resolução de contratos, respectivamente, ante a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
Já são inúmeras as decisões sobre o tema, não havendo entendimento pacificado sobre o assunto.
Para a elaboração deste artigo, foram analisadas 10 decisões, das quais 80% entendem que não há a possibilidade, por meio de comando judicial, da suspensão das prestações oriundas do contrato de locação pelo seguinte fundamento:
“a legislação civil autoriza a parte a rescindir o contrato- artigo 478 CC- ou postular a sua readequação- artigo 317 do CC – mas não a suspender o cumprimento da obrigação[10]”
Também foi ressaltada a necessidade de se levar em consideração um equilíbrio para ambas as partes do contrato (locador e locatário), o que não se alcançaria com a suspensão do pagamento dos aluguéis:
“não se deve apenas ver o lado do locatário. O locador pode ser pessoa a depender da renda para o sustento. Nesses casos, portanto, o balizamento do Poder Judiciário faz-se mais ainda imperioso, equilibrando os sacrifícios de cada qual com base em critérios de equidade[11].”
“a onerosidade não restou causada pelo requerido, motivo pelo qual não há como onerá-lo com suspensão integral do pagamento, visto que seus rendimentos decorrem dos alugueres de seus imóveis locados, devendo ser aplicada uma solução razoável, que exige a colaboração entre as partes, de modo que os prejuízos sejam equilibrados[12].”
Todavia, majoritariamente, o posicionamento da jurisprudência é no sentido da redução do valor dos aluguéis, readequando-os à nova realidade, tendo em vista a diminuição da capacidade econômica do locatário, sendo, via de regra, acolhido o percentual de diminuição proposto pelo mesmo. Desde que dentro de um percentual razoável e, também, levando em conta a realidade fática e econômica das partes. Entre as decisões analisadas, o percentual de redução variou entre 35% e 80% do valor original do aluguel.
Em apenas um caso analisado foi deferida a suspensão do pagamento dos aluguéis[13], decisão foi proferida por juiz de 1º grau, em sede de liminar. Em outro caso[14], obteve-se a suspensão da cobrança de aluguel mínimo, mantendo-se o pagamento do aluguel em percentual sobre o faturamento. No entanto, cabe ressaltar que em ambos os casos, foi mantido o pagamento das taxas condominiais, respectivamente, sob os seguintes fundamentos:
“(…) no tocante ao pagamento do valor do condomínio, reputo que este não pode ser afastado, uma vez que envolve despesas devidas em razão da manutenção do shopping (…)”.
“(…) O valor do condomínio não pode ser afastado, pois será reduzido naturalmente diante da diminuição dos gastos para manter o shopping ‘fechado’ e envolve despesas devidas a terceiros de boa-fé (…).”
Assim, diante da análise de decisões judiciais sobre o tema, tem-se que, no atual cenário, a concessão da suspensão do contrato de aluguel é hipótese mais remota, pois acabaria por onerar o locador, não resolvendo, pois, a questão do desequilíbrio contratual.
Parece-nos que a redução/readequação dos aluguéis é a opção mais adequada para minimizar os inevitáveis danos frente à Pandemia. Nesse sentido, a negociação extrajudicial – intermediada, ou por própria iniciativa das partes – ainda é a maneira mais célere e satisfativa para resolver a questão, pois, a partir da criação de opções conjuntas entre as partes, pode-se chegar a um reequilíbrio contratual, satisfazendo o interesse de todos.
De todo modo, não sendo possível o entendimento extrajudicial, o pleito judicial já nasce com inúmeros precedentes favoráveis ao restabelecimento do sinalagma contratual, ou seja, ao reequilíbrio do contrato.
Processos analisados:
Agravo de Instrumento nº 2063701-03.2020.8.26.0000, 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Arantes Theodoro.
Agravo de Instrumento nº 0707596-27.2020.8.07.0000, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Relator: Desembargador Eustáquio de Castro.
Tutela Cautelar Antecedente nº 1010893-84.2020.8.26.0114, 8ª Vara Cível do Foro da Comarca de Campinas – TJSP, Julgadora: Juíza Bruna Marchese e Silva.
Tutela Cautelar Antecedente nº 5002724-52.2020.8.13.0518, 2ª Vara Cível da Comarca de Poços de Caldas – TJMG, Julgadora: Juíza Alessandra Bittencourt dos Santos Deppner.
Agravo de Instrumento nº 2072891-87.2020.8.2020, 34ª Câmara de Direto Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Desembargador Tércio Pires.
Tutela Cautelar Antecedente nº 1004132-64.2020.8.26.0008, 1ª Vara Cível do Foro Regional do Tatuapé – TJSP, Julgador: Juíz Paulo Guilherme Amaral Toledo.
Agravo de Instrumento nº 0022449-49.2020.8.19.0000, 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Relator: Desembargador Fernando Cerqueira Chagas.
Revisional de Aluguel nº 1030378-15.2020.8.26.0100, 22ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo – TJSP, Julgador: Juiz Mario Chiuvite Júnior.
Procedimento Comum Cível nº 1004363-06.2020.8.26.0004, 2ª Vara Cível Foro Regional da Lapa – TJSP, Julgador: Juiz Carlos Bortoletto Schmitt Corrêa.
Tutela Cautelar Antecedente nº 0709038-25.2020.8.07.0001, 25ª Vara Cível de Brasília – TJDF, Julgador: Juiz Julio Roberto dos Reis.
[1]https://www.camara.leg.br/noticias/653754-chega-a-camara-projeto-que-cria-regime-juridico-especial-para-periodo-de-pandemia/
[2] idem
[3] https://www.conjur.com.br/2020-abr-04/opiniao-covid-19-regime-juridico-emergencial-direito-privado
[4] Art. 565 do Código Civil. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.
[5] Agravo de Instrumento nº 0707596-27.2020.8.07.0000, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Relator: Desembargador Eustáquio de Castro.
[6] Agravo de Instrumento nº 2072891-87.2020.8.2020, 34ª Câmara de Direto Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Desembargador Tércio Pires.
[7] REsp 945.166-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 28/2/2012
[8] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[9] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
[10] Agravo de Instrumento nº 2072891-87.2020.8.2020, 34ª Câmara de Direto Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Desembargador Tércio Pires.
[11] Agravo de Instrumento nº 0707596-27.2020.8.07.0000, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Relator: Desembargador Eustáquio de Castro.
[12] Tutela Cautelar Antecedente nº 5002724-52.2020.8.13.0518, 2ª Vara Cível da Comarca de Poços de Caldas, Julgadora: Juíza Alessandra Bittencourt dos Santos Deppner.
[13] Tutela Cautelar Antecedente nº 1010893-84.2020.8.26.0114, 8ª Vara Cível do Foro de Campinas, Julgadora: Juíza Bruna Marchese e Silva.
[14] Tutela Cautelar Antecedente nº 0709038-25.2020.8.07.0001, 25ª Vara Cível de Brasília, Julgador: Juiz Julio Roberto dos Reis.
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